sexta-feira, 4 de junho de 2010

Dez Equívocos Psicanalíticos na Teoria de Freud*

Abram Eksterman**


“Know thyself? If I know myself, I’d run away”
W.J von Goethe


I – Introdução

O longo período em que fui professor e coordenador do Curso Teórico sobre a obra do criador da Psicanálise, Sigmund Freud, no Instituto de Formação Psicanalítica em minha Sociedade, produziu-me a convicção de que muito além de estudarmos o texto de sua obra, deveríamos nos dedicar a estudar seu objeto de estudo. E com essa advertência iniciava a série de seminários. Seus textos seriam portas de acesso básicas sobre as quais poderíamos erguer o edifício cognitivo da Psicanálise. Insistia em incutir nos alunos liberdade e autonomia intelectual para que mais que seguidores de um gênio fossem efetivos continuadores de sua obra, melhor forma de honrarem o legado que recebiam. Tal sempre me pareceu a missão de um aluno de ciências, diferente daquele discípulo de verdades acabadas dos mestres religiosos. Nunca efetivamente entendi que pudessem existir várias psicanálises de acordo com postulados de alguns renomados autores. Especialmente me era impossível entender uma “psicanálise freudiana”, salvo por conta dessa estreiteza intelectual que nos faz adeptos e não (como deveria ser) continuadores. Nas minhas modestas contribuições ao estudo da obra de Freud enfatizo invariavelmente o estudo crítico de sua exposição, especificamente para depurá-la dos resvalos inevitáveis que um gênio de seu porte está sujeito. Penso assim estar contribuindo para o desenvolvimento de seu estudo e conseqüentemente da prática da Psicanálise. O que chamei dos “dez equívocos psicanalíticos na teoria de Freud” é produto dessa intenção e tem tudo a ver com minha profunda reverência ao gênio que marcou minha vida profissional e meu principal objeto de estudo. É a forma que encontro para expressar minha mais profunda aderência ao seu objeto de estudo, que é a pesquisa da humanidade do homem. E que, finalmente, permite esse tipo de atrevimento intelectual. Inspirei-me no notável filósofo americano Mortimer Adler de quem parafraseio o título de sua notável obra: “Ten Philosophical Mistakes”, para nomear este trabalho, sabendo, humildemente, que muito me separa da extraordinária competência desse notável autor, mas muito dele me aproximo pela admiração que nutro por seu espírito crítico.
Devo examinar neste trabalho os seguintes tópicos:

*Apresentado no Congresso Comemorativo do 150º aniversário de nascimento de Sigmund Freud, Praga, Rep. Tcheca, 6 de maio de 2006.
** Membro Titular da S.B.P.R.J. e da International Psychoanalytical Association



1. Psicanálise não é a busca do inconsciente, mas a busca de ´como se forma a consciência´.

2. Defesa não é só um meio de proteger nossa mente de impulsos inconscientes, mas, além disso,um meio de proteger nossa consciência organizada do inconsciente caótico.

3. Psicanálise lida com conhecimento caótico. Assim não há lugar para estudos sobre etiologia como se faz na medicina diagnóstica. O estudo diagnóstico em Medicina deriva da Biologia e se refere à doença; Psicanálise deriva da experiência interpessoal e se refere a Existência.

4. Portanto, Psicanálise não é uma explicação de distúrbios funcionais do cérebro; antes é uma exposição transcendental de relações humanas, nas quais a Natureza não é o paradigma, mas somente sintaxe e semântica o são.

5. A pregenitalidade não é uma forma anterior evolutiva da genitalidade, mas a expressão da maior ou menor impregnação do processo primário de pensar nas representações relativas aos fenômenos sexuais.

6. Repressão não é contenção de forças instintivas; é a dissociação do significado de seu significante cuja conseqüência é a perda de sentido, ou inconsciência.

7. Conduta e significado são dimensões epistemológicas diferentes. Psicanálise está comprometida com o significado e só o está com a conduta na medida em que significados induzem condutas.

8. Em conseqüência. a Psicanálise, como instrumento terapêutico, não visa especificamente mudança em condutas, mas visa produzir consciência com a expansão de seus conteúdos simbólicos.

9. Psicanálise não pode ser instrumento de qualificação axiológica, ou mais precisamente, de discriminação ou orientação moral. A consciência do vínculo interpessoal é que possibilita a qualidade da relação afetiva

10. Transferência é um fenômeno intermediário de transformação semântica e não a reedição de pautas de condutas do passado infantil no cenário da experiência de vínculo adulto. Transferência indica significantes no processo de se apresentar como significados.




Algumas advertências preliminares são indispensáveis. Esse estudo não é um trabalho exegético no sentido de que esmiucei o texto de Freud e tentei extrair dele significados esotéricos, os quais, movido por talentos extraordinários, pude compreender o que ninguém antes conseguira. Longe estou dos notáveis comentadores de Freud (e foram numerosos e geniais). Freud mesmo foi seu melhor comentador e realizou algumas tentativas de síntese de sua obra como no trabalho sobre Psicoterapia, nos trabalhos metapsicológicos, nas Lições Introdutórias, nas Novas Lições Introdutórias e no “Esboço”, póstumo. Freud, além do mais, foi um excelente escritor, claro e preciso, como o são os gênios da cultura alemã. Não acho que alguém precise ir além de Freud, realizar um trabalho metalinguístico de Freud. Mas penso que é indispensável continuá-lo e deploro o expurgo de alguns geniais continuadores que apresentaram novas visões, algumas críticas e importantes, mas que não foram ortodoxas.

Mas como falar em ortodoxia na Psicanálise? Se o próprio Freud até o final realizava esforços hercúleos para se auto superar e se tornar ainda mais claro, é porque ele próprio desconfiava que deveria ser continuado e tinha consciência de que havia chegado às portas de um novo conhecimento. E divisado sua imensidão, contemplado, como Moisés o fez do alto do monte Nebo, a terra prometida do autoconhecimento, máxima realização humana- como proposto no pórtico de templo de Delfos – e deixado aos discípulos a missão de conquistar essa terra, dando-nos novo fôlego para a conquista de nossa humanidade. Não há psicanálise, nem ortodoxa, nem freudiana, nem kleiniana, nem lacaniana, nem winnicottiana, nem kohutiana, nem bioniana, e nem outras tantas denominadas existenciais, culturalistas, jungueanas e quantas seitas que se dispersaram e se confundiram em pequenas paróquias esquecendo-se da missão essencial do “Gnothi Seauton“, legado pelo conhecimento da psicodinâmica criada por Freud. Há psicanálise, sim, e persiste como método de investigação desse fantástico (literalmente) “software”, instrumento por excelência de humanização, que é a vida mental.

É necessário obviamente conhecer a obra toda de Freud, seus principais comentadores e biografias, e, sobre tudo ter vivido uma autêntica análise pessoal e praticar psicanálise. Sem isso, corre-se o risco de se perder em palavras e conceitos no esmiuçamento de rodapés e textos secretos , enfim na arqueologia do saber, numa metapsicanálise, quando o que precisamos saber está bem exposto, em linguagem clara que mereceu o prêmio Goethe. Freud não precisa seguidores; precisa de continuadores.


Em razão disso, a bibliografia deste texto é apenas referencial, não exaustiva, embora utilize algumas quantas citações específicas. Não vou me servir da autoridade de nenhum autor, nem mesmo da de Freud, para corroborar minhas afirmações. O que direi é produto da reflexão de um estudante e de um psicanalista. E, confesso, de alguém que se dedica a continuar a pesquisa que Freud começou. Se puder comover pelo menos um de meus ouvintes, me sentirei recompensado pelo esforço.

Sucessivamente vamos examinar os dez “equívocos”:





1 – A busca pelo inconsciente ao invés de “como se forma a consciência”.

Se pudermos nos deter em um trabalho pouco estudado de Freud sobre “Afasias” (1891) poderíamos encontrar ali o germe da Psicanálise na concepção de “afasia funcional” . Afirmava ele que algo deixa de ser consciente se perde a conexão com a “representação de palavra” (wortvorstellung). Daí emergiu a idéia de repressão – cisão da representação de coisa com a representação de palavra - necessária para manter uma experiência fora da consciência e, em conseqüência, a concepção do inconsciente, fundamento da própria Psicanálise. Mas, a parte essencial não foi bem destacada: o fato de que isso se dá só porque a relação desse conteúdo mental com outras pessoas produziria sofrimento. Defesa e inconsciência são resultados, portanto, de um processo de interação; estão no âmago mesmo da relação do sujeito com o outro. Desde esse momento fica evidente que Freud está estudando a interação humana e não o que se passa no cérebro, fato que ele próprio nem sempre se deu conta, ou porque pensava como neurologista, ou porque temia se afastar demais dos cânones científicos da época. Se ousasse essa ultrapassagem, poderia passar para a posteridade não como um cientista que investiga fenômenos naturais, mas como um filósofo que especula a natureza do encontro humano, a exemplo do que fez seu mestre em filosofia Brentano ou seu contemporâneo Nietzsche. Sem falar, obviamente, na noção circulante contida nos três volumes de Edouard von Hartmann sobre o Inconsciente, com sua noção de inconsciente relativo, matriz da consciência psicológica.

Que é afinal o inconsciente, base de toda metapsicologia de Freud? Depreende-se de seus escritos que inconsciente é a sensopercepção que ainda não adquiriu significado. Neste sentido o inconsciente é um fenômeno da psicologia unipessoal, está estritamente relacionado com os fenômenos neurofisiológicos, contido nos métodos científico-naturais e compreendido dentro de relações causais. É um estado no qual os conteúdos sensoperceptivos ainda não receberam wortvorstellung e permaneceram como Dingwortvorstellung. Por que dar ao inconsciente palavras? Para produzir consciência. E com isso ego. E com ego, relações. E com relações, espaço de interação social e, portanto, cultura, estudo comprometido não mais como as ciências que estudam cadeias causais, mas com sistemas que estudam significados.

É compreensível que Freud tenha insistido em afirmar a existência do inconsciente através da exposição de seus conteúdos e escassamente através dos processos que se desenvolvem para tornar esses conteúdos elementos da consciência. Foi justamente aí que Karl Popper pode desenvolver sua crítica à Psicanálise. Na realidade, só podemos afirmar a Psicanálise nos processos que geram consciência, ou, mas especificamente, nos processos que geram “ego”, de cuja organização dependerá o vínculo necessário com a realidade para dissipar os conflitos neuróticos, promover a organização harmoniosa com a realidade ensejando estruturas adaptativas eficazes, e a participação na vida social e organização mental, alem da construção de um destino individual.

A ênfase na necessidade de afirmar a existência do inconsciente levou a prática psicanalítica a dar prioridade à pesquisa de seus conteúdos ao invés de utilizar esses conteúdos no esforço clínico de construir um ego saudável e estabelecer os limites clínicos operacionais, da investigação do inconsciente, cuja investigação indiscriminada pode liberar forças instintivas de alto poder destrutivo sobre as estruturas simbólicas e sociais que asseguram o funcionamento saudável do ego. Podemos perceber que, recuperando-se o objeto terapêutico da Psicanálise, qual seja, o de expandir, construir e operacionalizar o ego em face da realidade, podemos fazer confluir estudos que foram banidos da chamada Psicanálise ortodoxa, como os da escola culturalista (muito consentânea com os estudos do cognitivismo atual) e outros estudos vistos com reservas, como os da Psicologia do Self.


2 – A patologia decorrente de mecanismos de defesa ao invés da função protetora desses mecanismos relativamente ao ego.


Freud, na abertura de seu trabalho metapsicológico sobre o inconsciente, enfatiza: “We have learnt from psychoanalysis that the essence of the process of repression lies, not to putting an end to, in annihilating, but in protecting it from becoming conscious” (XIV, 166). Desde os primórdios de seus trabalhos até seu último escrito (“Esboço...”), este é o conceito teórico paradigmático da teoria e da técnica psicanalítica. A prevenção assim realizada é a custa do que ele denominou mecanismo de defesa, cujo principal mecanismo e primariamente descrito foi o da repressão, ampliado sucessivamente e sistematizado em 1930 por sua filha Anna. Foram descritos um pouco mais de vinte tipos de defesas contra determinados conteúdos mentais que poderiam se tornar agentes de sofrimento se experimentado em nível consciente. Esses conteúdos mentais devem estar sempre associados a sentimentos. Sentimentos, como sabemos, são estados afetivos que se tornam conscientes na interação humana e modelam condutas conseqüentes entre as pessoas envolvidas.
Ficamos sabendo assim que a percepção de estruturas simbólicas de natureza afetiva têm a capacidade de gerar sofrimento e que a organização mental, a exemplo da organização biológica, tem a capacidade de se proteger com “barreiras simbólicas”, que, por sua vez, protegem a vida mental de experiências lesivas. Toda a idéia metapsicológica de dinâmica mental provem dessa descrição metafórica de “forças oponentes”, ora gerando conflito, ora inconsciência, ora sintomas, ora qualquer tipo de combinação entre eles, ou a totalidade em conjunto desses processos. Algumas dessas defesas geram tipos de sintomas que se enquadram no que Freud designou, dentro de suas taxonomias psicodinâmicas, como neurose. A solução desse sofrimento, portanto, ficou accessível, demolindo-se as defesas, conhecendo-se as forças em oposição, ampliando-se a capacidade de elaboração do ego, e substituindo-se os elementos infantis ou anacrônicos do conflito por atualizações maduras do comportamento. Como uma espécie de “download” para atualizar os sistemas operacionais para os novos “inputs”. Enfim, uma descrição paralela ao que é realizado pelo sistema biológico relativamente aos mecanismos de defesa orgânicos, patrocinados basicamente pela imunidade. Neurose seria, utilizando o símile biológico, uma doença auto-imune, e a Psicanálise um esquema terapêutico dessensibilizante, propiciando a integração dos elementos da vida mental, agastada por conflitos intrapsíquicos .
Da mesma forma como ocorreu o “conhece-te a ti mesmo” desenfreado em busca de segredos do inconsciente, a ponto de tecnicamente se confundir interpretação com revelação e conteúdo latente como a verdade, dissimulada por mecanismos de defesa, além de gerar a falsa concepção de que a verdade é sempre uma verdade oculta e que o que se revela ostensivamente é uma “screen memory”, também os mecanismos de defesa, assim reconhecidos como verdades dissimuladoras do sujeito, foram objeto de anatemização sistemática e que, portanto, deveriam ser objeto prioritário de abolição dentro do processo psicanalítico. Em parte, por conta de expressões iniciais utilizadas por Freud como “Neuro-psicoses de Defesa”.
A conseqüência da prática de demolir defesas dessa maneira fundamentalista foi descaracterizar o paciente como um “self”, uma identidade, e torná-lo vulnerável a uma “neoplasia ideatória” e a uma atrofia da capacidade de pensar, gerando discípulos e sectários de uma ideologia que, não conseguindo construir uma identidade, a emprestaram de seus analistas. Não é por acaso que os americanos chamaram seus analistas com a expressão cômica e ao mesmo tempo agressiva (como toda comicidade contém aspectos afetuosos e agressivos) de “headshrinker” , ou simplesmente, “shrink”. Assim produzindo exatamente o oposto que uma análise bem conduzida deveria produzir. Parece-me óbvio que a intolerância conceitual, especialmente desenvolvida após 1910, foi gerada a partir dessa idealização das “verdades inconscientes” e sua concomitante demolição de defesas psicológicas. A Psicanálise perdeu com isso a abertura necessária para um debate crítico e a apreciação de uma torrente de novas idéias que o nascimento da psicodinâmica gerou.
Mecanismos de defesa, é bom reiterar, significam exatamente o que é enunciado. Defendem. Defendem a integridade de um sistema mental e a intervenção sobre estes mecanismos só se deve realizar para sanar vulnerabilidades geradas por conflitos ou anacronismos promotores de esquemas neuróticos de viver, ou quando tivermos a mão esquemas defensivos melhores. Sem essa observância não vejo como esse notável instrumento terapêutico e de pesquisa que é a Psicanálise não gere, ela própria, outras patologias psíquicas, somáticas ou sociais, tornando-se um importante agente morbígeno.


3 – Psicologia Unipessoal (levando a neuropsicologia) ao invés de Psicologia diádica, ou Psicologia da relação.


Aparentemente este tópico não poderia estar no rol dos equívocos atribuíveis a Freud, pois esta discussão ultrapassa de muito os temas por ele abordados. As ansiedades de separação que deram origem à concepção diádica, foram publicadas por John Bowlby a partir de 1957, no documento da WHO e o 1o. volume do livro “Attachment and Loss”, em 1969. Mas, deixando de lado questões semânticas, percebemos desde o início das publicações de Freud que quando menciona o desvelo com que Charcot se dedica “a dissecção da nosografia” de seus pacientes histéricos, o que de fato queria nos fazer entender como “nosografia”? Nada menos que a biografia, da mesma forma como podem ser consideradas as minúcias dissecadas nos sintomas de Anna O. por Breuer. O que de fato é ressaltado não é o sintoma, mas a história do sintoma e, portanto, a história do paciente. Método que Freud, a partir daí, adota e perpassa em todos seus estudos de histéricos. Ao dizer que os histéricos sofrem de reminiscências o que fica evidente é que os histéricos contam biografias patogênicas, cuja rememoração os leva a sofrimentos insuportáveis, daí a necessidade de excluir essas experiências da consciência. O procedimento de “limpeza da chaminé”, utilizada por Breuer, através do método hipnótico nada mais é do que uma tentativa de “elaboração” da experiência emocional traumática através do vínculo emocional com o terapeuta, vínculo que Breuer não suportou e que Freud pode reconhecer e utilizar chamando-o, no caso Dora, de “ transferência”. Por que dissecção do sintoma e não dissecção biográfica? Porque biografia levaria, na época, ao romance, ao contexto moral, como já fora realizado por Phillippe Pinel, quase cem anos antes. A dissecção do sintoma fazia parte do “contexto científico”, do elementarismo causal que daria crédito e méritos hipocráticos a seu descobridor.. Assim procedeu seu mestre Charcot, seu amigo Breuer; assim recomendaram seus guias científicos Du bois Raymond, Helmholtz e Brücke. Assim procedeu Freud, deixando para a posteridade o mérito de conceder à histeria condição médico-terapêutica, embora, toda a Psicanálise fundada por ele seja um estudo historiográfico, ou seja, um estudo crítico da biografia dos pacientes. Ou como diria em privado o próprio Charcot a seu estagiário, o jovem Sigmund Freud: “Sempre há um segredo por baixo da histeria”.

Desta forma, o estudo do sintoma histérico tomou o lugar do estudo biográfico do paciente, e tornou proeminente uma psicologia derivada da neuropatologia e não uma psicologia derivada das estruturas simbólicas produzidas pela relação humana. A partir daí, como dizia Danilo Perestrello, desenharam-se dois Freuds, um técnico dedicado a nosografias dentro do estrito modelo médico, e, outro, clínico, que tomou como base a relação médico-paciente, transfigurada no estudo da transferência e que deu substância a todo procedimento terapêutico. Para o primeiro, a psicologia unipessoal. Para o segundo, a psicologia da relação humana, diádica, ou multipessoal.
É interessante observar que todas as formas de psicanálise utilizam com êxito o segundo modelo, o da relação clínica, com ênfases diferentes em alguns aspectos dessa mesma relação, inclusive aquelas psicoterapias que excluem o conhecimento do inconsciente. As divergências surgiram nas concepções teóricas, onde se multiplicaram as psicoterapias, cada qual defendendo seus respectivos territórios teóricos com a ferocidade de fundamentalistas religiosos.
Dois ingleses, entre muitos outros espalhados pela comunidade internacional, de maneira diferente, exortaram para algum entendimento: John Klauber, que chamou a atenção para a historicidade do método psicanalítico e Hans Thorner que insistia em vermos que aspectos nos aproximam e com os quais todos nós podemos concordar. É urgente, portanto, uma reapreciação de nossos modelos teóricos e nos debruçar em maiores reflexões sobre a clínica, realizar uma metaclínica, para encontrarmos as bases de uma psicodinâmica geral que fundamente melhor a prática psicanalítica.



4 – A repressão compreendida como pressão defensiva ao invés da função dissociativa entre significante e significado.

Repressão e inconsciente são dois conceitos que institucionalizaram a Psicanálise. O inconsciente como fundamento teórico e a repressão como fundamento clínico. Vale transcrever o conceito de repressão como exposto por Freud em seu respectivo trabalho metapsicológico: “At some later period, rejection based on judgement (condemnation) will be found to be a good method to adopt against an instinctual impulse. Repression is a preliminary stage of condemnation, something between flight and condemnation. It is a concept which could not have been formulated before the time of psycho-analytic studies” (XIV, 146) .
Duas dimensões epistemológicas cruzam-se nesse trecho essencial da teoria de Freud. Uma delas trata de um impulso biológico e a outra de uma condenação moral, psicológica. Poderíamos afirmar que o conhecimento deste cruzamento poderia nos iluminar quanto ao lugar preciso em que Descartes buscava sua conexão entre o res cogitans e o res extensa, o lugar de conexão da alma com o corpo, que ele, Descartes, localizava na glândula pineal. A pensar pela proximidade anatômica do eixo hipotálamo-hipofisário, Descartes, no remoto século XVII, errou por pouco.
Seria, na concepção moderna, o lugar em que a dimensão simbólica, como concebida por Ernst Cassirer, e a dimensão biológica se cruzariam, o lugar prioritário da pesquisa da neurociência atual (especialmente desde Damásio),e o lugar da visão psicossomática, necessária à prática médica do século XXI. Se Descartes errou por pouco, certamente estamos errando por muito, quando tentamos reduzir essa questão essencial mente-corpo, a uma, ou outra dimensão. Não é difícil entender que o “impulso instintivo” de Freud é um “quase impulso biológico” e a “condenação” mencionada por ele, é “quase” uma afirmação psicológica. A moderna ciência dos computadores pode nos dar uma resposta mais aproximada. O “quase impulso” faz parte de um “hardware” e a condenação” faz parte de um “software”. A ação corretiva, ou em termos médicos, os recursos terapêuticos são completamente diferentes nos dois casos. No primeiro, biológico, usamos instrumentos e recursos materiais. No segundo, psicológico, usamos programas, ou seja símbolos, ou seja derivados da interação (relação) humana. Estudos sobre como fazer interagir esses dois recursos para implementar resultados terapêuticos mais eficazes ainda são incipientes e padecem de preconceitos conceituais e grandes interesses institucionais e econômicos que precisam ser denunciados e eventualmente eliminados.
Obviamente que o termo “condenação” não foi utilizado como sinônimo de força física, como algo que se opõe à tensão gerada pelo instinto em favor de sua realização, ou seja, esgotar-se na satisfação com objetos específicos ou equivalentes. Como entender que a “força” psicológica de uma experiência simbólica pode se contrapor a uma exigência de mobilização física? Aparentemente parece impossível que um ato mental possa desmobilizar um ato material. Isso seria factível se todos nós pudéssemos nos matricular na escola de feiticeiros onde Harry Potter tem cursado com brilhantismo e realizado suas proezas ao lado de seus companheiros. Sem dúvida, isso soa como mágica: exorcizar forças físicas e impedir seu fluxo natural. Interromper a seqüência de fenômenos naturais esconjurando seus propósitos. Simplesmente, na expressão de Freud, condenando-os. Lembremo-nos que, nós médicos, apesar de todo conhecimento psicanalítico desenvolvido no século XX, ainda estamos influenciados por diagnósticos em que o clínico, diante de exames laboratoriais negativos, afirma ao paciente que ele não tem nada, é só “emocional”. Assim, “emocional”, ainda na visão médica é equivalente a não ter nada e, em conseqüência, recebe a orientação terapêutica de “cure-se por si mesmo de suas mazelas”.
Como um “abracadabra” pode imobilizar um impulso biológico? Respondeu Freud: “tornando-o inconsciente”. Em outros termos, perdendo o rumo, dispersando-o na economia biológica, ora alterando a funcionalidade do sistema biológico, ora enganando-o com satisfações equivalentes, ora impedindo sua consecução com rituais dissuasórios e diversificadores, ora encistando-o em condutas sociais de autoproteção. A necessidade não se extingue jamais, o que ocorre é uma manobra diversificadora, enganadora. Ou por equivalentes, ou por enganos e ilusões, ou por proteções institucionalizadas pelo ambiente social. Freud analisou esse embate entre a biologia e a psicologia, primeiro em um trabalho mais tímido de 1908 (“Moralidade ‘civilizada’ sexual e a doença nervosa moderna”) , depois numa seqüência de estudos antropológicos: “Totem e Tabu”, “Mal-estar na Civilização”, “Futuro de uma Ilusão” e “Moisés e a religião Monoteísta”. Em todos, não nos deixou alternativa para aspirar o bem-estar senão a renúncia psicológica e os caminhos da sublimação. Em outros termos, produzir consciência. Ou melhor, ainda: ampliar a capacidade da estrutura simbólica do ego. Em termos filosóficos, pensando numa ontologia, ampliando a nossa humanidade.
Não há, portanto, como incluir idéias mecânico-hidráulicas nessa concepção, equívoco que Freud nos legou tentando traduzir o fenômeno da repressão em metáforas da mecânica física, produzindo traduções como de “refoulement” em francês, o que levou filósofos como Herbert Marcuse a propugnar por uma liberação das forças de contenção social e, equivocadamente utilizar o conceito de repressão psicanalítica como um apelo social pela liberação de costumes que inflamou a juventude da década de 60, virou ao avesso tradições e ajudou a psicotizar o ambiente social, até aos dias de hoje, ora em prol da liberação de drogas, ora em prol da liberação indiscriminada de mensagens e hábitos. Em grande medida em favor de uma vida em que justamente a consciência está (psicanaliticamente) reprimida. Paradoxalmente, o grande movimento pela liberdade, tornou-se também o melhor instrumento de repressão, portanto, de inconsciência. Entendendo-se que só consciência produz liberdade.


V –Pregenitalidade como conduta sexual ao invés de simbolização da sexualidade.

Henry Ellenberger em seu alentado estudo sobre “A Descoberta do Inconsciente” assinalou com propriedade que, ao contrário do que se pensava a respeito do escândalo causado pela publicação dos “Três Ensaios...” em 1905, não houve nem escândalo, nem surpresa. A sexualidade infantil já era discutida, assim como as perversões sexuais e não havia mais na época uma sociedade vitoriana, ao contrário, a lubricidade era assunto quotidiano, claro não com a pletora pornográfica e a liberação erótica dos dias atuais. Mesmo para a época, o texto de Freud era bem comportado. Dessa obra, bastante clínica e descritiva, firmou-se a idéia de uma evolução da vida sexual em três etapas principais. A primeira predominantemente auto-erótica; a segunda, vinculada a objetos parciais e a terceira, realizando os objetivos da genitalidade adulta. A primeira e a segunda, Freud as descreveu como pré-genitais e nelas localizou as perversões, entendidas como práticas que excluem a relação sexual adulta, designada como genital, caracteristicamente substituindo a relação adulta, ou pelo auto-erotismo, ou por objetos parciais. Fica claro o objetivo dessa publicação, uma vez que atribuiu aos desvios sexuais e às vicissitudes de seus impulsos parciais a causa das neuroses, aliás, de todas as formas conhecidas na época e não apenas da histeria, como estabeleceu especificamente em 1896.
Sem dúvida, podemos admirar o cuidado clínico como realizou a obra e não é por acaso que passou a ser vista, juntamente com a”A Interpretação dos Sonhos”, como os escritos basilares da Psicanálise. Contudo, porque esse trabalho se revela mais como um texto fenomenológico que comprometido com a visão psicodinâmica já estabelecida desde o capítulo VII da “Interpretação dos Sonhos?” Mais uma vez a resposta parece ser bastante evidente. Era a época de consolidar a concepção etiológica das neuroses e estabelecer a psicanálise como fator terapêutico específico para essa classe de enfermidade. Psicanálise, naquele período, era um procedimento terapêutico a ser justificado no ambiente científico reconhecido, sem o que poderia ser apreciado como um derivado do mesmerismo, das curas esotéricas estimuladas pelo desenvolvimento do espiritismo já bastante popular na época, e das sociedades orientalistas das quais procurava-se guardar grande distância, daí os cuidados na tradução para a língua inglesa da obra de Freud, tentando utilizar vocábulos de maior consistência no quotidiano cientifico, como assinalou, por exemplo, Bruno Bettelheim a propósito da tradução para o inglês da palavra alemã “seele” (alma) como “mind” (mente). Assim como o cuidado que se teve ao tratar de temas como o da telepatia.
Livres que estamos nos dias atuais de legitimar a prática psicanalítica de preconceitos epistemológicos e, especialmente, médicos, embora ainda atravessando numerosas crises institucionais e de credibilidade, podemos retomar o tema da pregenitalidade, como exposta por Freud, numa apreciação psicodinâmica crítica, indo possivelmente um pouco além da mera descrição fenomenológica. É plenamente reconhecido que Freud ampliou o conceito de sexualidade para o de representação psíquica da vida sexual. Aliás, pelo desenvolvimento de seus trabalhos sobre sexualidade, percebemos nitidamente que ele é mestre na análise de conteúdos psíquicos e extremamente precário no entendimento da vida sexual. Em outros termos: hábil na compreensão do conteúdo psíquico e pobre na compreensão da conduta sexual. Sem dúvida, podemos afirmar que Freud, a rigor, nunca foi um sexólogo, como entendemos essa especialidade nos dias atuais. Mesmo não dá para compará-lo nesse aspecto, por exemplo, a um Havellock Ellis.
O cenário da especulação de Freud sobre sexo era o da vida mental. Assim, podemos concluir que a etiologia da neurose não considerava a prática sexual, mas a representação psíquica da sexualidade e que as duas neuroses descritas em seus trabalhos clínicos inicias, a neurastenia e a neurose atual, baseadas em especulações sobre “energia sexual”, traduzidas mais tarde como catexis, são formulações de uma dinâmica muito mais ampla que deveria incluir maior complexidade, e que essas exposições originais devem conter muito mais características metafóricas que descrições realistas de uma etiologia. Muita polêmica já ocorreu por conta dessas designações, e muita especulação teórica ainda sobrevive dando margem a outras tantas conseqüências teóricas e clínicas, cuja crítica ultrapassaria o objetivo desta exposição.
Se aplicarmos a dinâmica transformadora do processo primário para o processo secundário de pensar, podemos, acredito, ter uma versão, diria, mais psicanalítica do que fenomenológica, como está nos “Três Ensaios...”. Auto-erotismo, no cenário mental, confunde-se com o que ele descreveu mais tarde como narcisismo, onde o que se leva em conta não é o estímulo, mas a existência (ou não) de objeto do impulso. O objeto do narcisismo é o próprio sujeito, daí os estados mentais autistas e psicóticos graves, onde predominam a exclusão do objeto, substituídos por objetos-fantasmas, ou fantasias. O quadro polimorfoperverso da infância constitui um avanço do processo primário em busca da realidade sensoperceptual. Os elementos da sensopercepção da realidade começam progressivamente a se constituir como uma realidade e seus componentes jogam com o sujeito num cenário que Winnicott poderia designar como de brinquedo. A sexualidade parcial são jogos com objetos parciais. Na sexualidade adulta têm-se consciência do objeto e o outro passa a existir. Tal progressão lembra a grade exposta por W. Bion em seus “elementos de pensar” e como se produz a consciência da realidade, dependendo dos recursos estruturados e formadores do ego, em termos atuais, com sistemas mentais (sofwares) capazes de interagir com a realidade. O balanço entre processo primário e secundário é que permite a consecução de uma sexualidade do feitio genital que antes de estar comprometida com os imperativos do genoma, ao estilo de Schopenhauer, está comprometida com a relação consciente com outra pessoa. Isso, no meu entender, seria a sexualidade madura, capaz de produzir a experiência afetiva que costumamos chamar de amor. Longe, portanto, estamos de um processo evolutivo, da pregenitalidade para a genitalidade, mas antes, de um processo transformador dos elementos mentais da sexualidade, ora impregnados por elementos do processo primário, ora por elementos da sensopercepção comprometidos com a realidade e mediados pelo processo secundário.
Desta forma, as chamadas “patologias do comportamento sexual” cedem espaço para uma compreensão psicodinâmica dependente do balanço entre fantasia e realidade e as chamadas perversões teriam mais a ver com a institucionalização de comportamentos para evitar a irrupção maciça de processo primário e subseqüente destruição maior ou menor da estrutura do ego, produzindo em conseqüência um surto psicótico. Tal formulação ficou muito nítida nos textos de Freud especialmente no caso Schreber. Assim o estudo da patologia desloca-se do comportamento para a dinâmica mental e possivelmente podemos extrair disso não terapêuticas reformuladoras de condutas, mas recursos psicológicos para estimular e implementar novas transformações psíquicas, que é, no meu entender, a essência da intervenção psicanalítica.


VI – Ênfase no comportamento saudável ao invés da organização “saudável” de significados (levando a um ego saudável).

Freud inicia seu fundamental trabalho “Análise Terminável e Interminável” com uma advertência que deveria ser óbvia para todo psicanalista: “Experience has taught us that psycho-analytic therapy – the freeing of someone from his neurotic symptoms, inhibitions and abnormalities of character – is a time-consuming business” (XXIII,216). É uma observação nitidamente de estilo médico a respeito do objetivo da terapêutica, qual seja o de restabelecer um estado considerado saudável, perturbado pela irrupção de anormalidades da vida mental. Não há nenhuma novidade nisso: toda a obra de Freud trata a clínica psicanalítica como uma empreitada de cura. Contudo, curiosamente, a palavra “cura” está ausente em toda a sua obra. Mesmo no original em alemão, a palavra da frase citada é “Befreiung”* (libertar). Vale lembrar que a conceituação de Freud de Psicanálise era a de um método de investigação, uma teoria e uma prática terapêutica da vida mental**.
* Erfahrung hat uns gelehrt die psychoanalytische Therapie, die Befreiung eines Menschen von seinen neurotischen Symptomen, Hemmungen und Charakterabnormitäten, is eine langwierige Arbeit”
** No artigo para a Enciclopédia Britânica, assinala: “He [Freud] invented the term “psycho-analysis”, which in the course of time came to have two meanings: (1) a particular method of treating nervous disorders and (2) the science of unconscious mental processes, which has also been appropriately described as ‘depth-psychology’ ”. (XX,264)
Por que, em uma época de tão acirrada polêmica quanto ao método psicanalítico, Freud não utilizava a palavra cura ao se referir à terapêutica? Em sua autobiografia comenta que desde cedo não tinha vocação para médico. Ele próprio estava, desde sua auto-analise,
como Alice no mundo do espelho, preso na investigação do imaginário, do sonho, da fantasia, dessa massa mitológica e mitopoética que é nossa vida mental profunda.
De fato, sua capacidade especulativa é assombrosa. E efetivamente eletrizou a elite intelectual que o leu e o acompanhou, mesmo seus detratores. E produziu, ao longo de todo século XX, um frêmito de fascínio equivalente ao que produzem as modernas bandas de música popular. Mesmo hoje, se aparecesse já velhinho, magro e pequeno, com seus trajes formais, como aparece nas fotografias e com seu indefectível charuto num palco armado em um parque capaz de abrigar um milhão de pessoas, certamente os lugares para vê-lo seriam disputados no câmbio-negro. É sem dúvida o ícone inconteste do século XX, assim como o foi Napoleão no século anterior. Tornou-se o desbravador desse mundo fantástico que é a fantasia humana e percebeu nessas fantasias a origem da patogenia psicológica. E decidiu, como diria Paul Ricoeur, desilusionar esse ser sofrido que é o homem de sua auto-intoxicação pelo imaginário. Certo ou não, parece-me essa a razão porque, tentando ter uma linguagem médica, científica, resvalava para a linguagem poética e, tentando ser um historiador, era preponderantemente um dramaturgo. Criticá-lo por isso é tentar destituir a Psicanálise de seus méritos, é tentar extinguir uma cultura inteira que se erigiu sobre milhares de trabalhos de observação de seus seguidores sobre a natureza e comportamento humanos., imitando Scipião ao conclamar os romanos para destruir Cartago. “Delenda Psicanálise”, poderiam clamar hoje os adeptos de uma nova ciência baseada na neurofisiologia (afinal, nada nova). Ao contrário, mais uma vez parece-me a hora de reunirmos as vozes discordantes, os xiitas de todos as facções psicanalíticas e psicológicas (se isso for possível) e conclamá-los a unirem-se para entenderem a natureza da vida mental, que era o permanente anseio de Freud.
Teve êxito em sua empreitada terapêutica? Foi efetivamente um curador? Ao que consta, teve muitos fracassos e os casos que expôs, desde sua adesão às conclusões otimistas de Breuer sobre a cura realizada em Anna O., e os subseqüentes casos relatados nos “Estudos sobre Histeria”, na apreciação crítica de Mikkel Borch-Jacobsen em trabalho ( Lê Médecin Imaginaire), incluído na alentada obra organizada por Catherine Meyer (que, provavelmente inspirada em George Lucas e no seu personagem Darth Vader, a entitulou “Lê Livre Noir de La Psychanalyse”), também o foram, , assim como o caso do “Homem dos Lobos” (Sergei Pankelejeff). J. Allan Hobson, professor de Psiquiatria em Harvard, em publicação de 1987*, sob o título “Psychoanalysis on the Couch” assinala tal paradoxo e sugere sérias revisões nas posturas da Psicanálise. Tais críticas sempre me foram úteis para aprimorar meu trabalho clínico, considerando que sendo menos um pesquisador que um terapeuta, percebi que Freud era mais um pesquisador que um terapeuta. Bem mais. E creio que nisso cometeu seu maior equívoco, quando fascinado por sua pesquisa, “precisava provar” suas linhas teóricas, e o fez de maneira denodada ao longo de toda a sua vida. Está fora de questão, como falam seus detratores, que era um mentiroso, mas apenas alguém mobilizado pela importância de suas próprias descobertas e escotomizado por elas. Percebi, como professor de Psicanálise em meu Instituto de formação, do qual cheguei a ser diretor, que o didata insistia em “induzir” seu aluno para sua forma de pensar, bem como o aluno “maquiava” seus relatórios para o julgamento da Comissão de Ensino. Não creio que esse tipo de disfarce seja um fenômeno local, mas tem sua origem nesse modelo herdado do fundador da Psicanálise, de precisar provar o afirmado. São inúmeras as críticas a essa condução perversa de material científico e todas elas recebem, nesse sentido, meu integral apoio.
Por outro lado, creio que Freud tateava entre uma explicação causal e uma formulação hermenêutica, que produziu duas “linhas” de pensamento psicanalítico, aparentemente antagônicas, uma adotando os princípios estruturais inspirados em “O Ego e o Id” e outra no modelo topográfico e no princípio da causalidade, segundo o qual o inconsciente “causa” os sintomas da patologia mental, Não creio que Freud, com os recursos da época, poderia formular o problema de maneira diferente. A reflexão em torno de ciências naturais e as do espírito estava começando no debate epistemológico da filosofia. Mas é incrível que ele próprio tenha aberto o caminho, sem disso se aperceber, dividindo-se em dois Freuds. Seria possível atribuir a um conceito imaterial como inconsciente a materialidade de fonte causal? A solução é conquistada conceitualmente com a teoria de sistemas e com a teoria posterior do caos que procuram entender complexidades. Por enquanto, dentro das perspectivas e recursos mais atuais, é possível se pensar o seguinte, como ações terapêuticas integradas:

1) para os transtornos nos quais se observam vínculos causais, a ação terapêutica seria mais neurobiológica que psicológica com exceção para a dinâmica da histeria na qual a psicanálise é o instrumento de eleição;
2) para os transtornos de vínculo humano, manifestamente nas relações interpessoais, a ação terapêutica deveria dar prioridade aos conhecimentos psicanalíticos;
3) para os transtornos de natureza simbólica, unipessoal, a intervenção poderia ser beneficiada pela interpretação psicanalítica e por elementos do cognitivismo, salvo aquelas alterações nitidamente psicóticas, marcadamente causadas por distúrbios neurofisiológicos.

E para concluir esse item, algumas observações relativas a comportamento, cuja natureza é um estudo específico da Psicologia Geral, da qual justamente Freud pretendia distanciar a Psicanálise. Pergunta-se Freud quando uma análise pode ser dada como concluída. Responde: “Just [when] the patient shall no longer be suffering from his symptoms and shall have overcome his anxieties and his inhibitions; and secondly [when] the analyst shall judge that so much repressed material has been made conscious, so much internal resistance conquered, that there is no need to fear a repetition of the pathological processes concerned” (XXIII,219).
Assim entendemos que a ênfase sutilmente recai sobre os resultados no comportamento e não na avaliação das conquistas sobre a estruturação do ego e na sua competência em lidar com os desafios da vida sobre as quais pouco ficamos sabendo. Creio que isso levou muito bons analistas a confundirem sucessos sociais, pecuniários, acadêmicos, sexuais, como indicadores de êxitos terapêuticos, diante dos quais um psicanalista de minhas relações comentou: “apenas behaviorismo disfarçado”.





7 – Ênfase na normalização ao invés de geração de consciência


Existe realmente algo que podemos estabelecer como normal em termos de vida psicológica? É verdade que com algumas hesitações conseguimos discriminar distúrbios e sofrimentos. Mas o normal seria o equivalente a não haver distúrbios ou sofrimentos? Realmente sabemos o que é um ego normal? Em “O Ego e o Id” esse tema é descurado. No trabalho sobre “A Realidade na Neurose e na Psicose”, Freud assinala que “We call behavior ‘normal’ or healthy’, if it combines certain features of both reaction – if it disavows the reality as little as does a neurosis, but if it then exerts itself, as does a psychosis, to effect an alteration of that reality” (XIX,185).É digno de nota que nesse trecho põe entre aspas as palavras normal e saudável, enfatizando o relativismo de seus significados e seu compromisso com o que ocorre na dinâmica da neurose e da psicose. Efetivamente ficamos sem saber o que é um ego normal, mas entendemos, justamente em Freud, que uma das funções do ego é estabelecer a partir de uma administração das relações entre as fantasias instintivas do id e as demandas da realidade sensoperceptual e da realidade cultural um funcionamento ”normal” da vida psíquica. A rigor não existe um ego normal, mas uma capacidade de viver “normalmente”. O que se revela ao terapeuta não é um ego doente, mas seu funcionamento precário.
Isso antecipa a análise posteriormente realizada por Heinz Hartman em uma comunicação de 1950 (“Comments on the Psychoanalytic Theory of the Ego”), incluida em seus “Essays on Ego Psychology. Em Freud não conseguimos apurar o que vem a ser uma pessoa normal e um aparelho psíquico saudável, embora todo procedimento psicanalítico converja para o restabelecimento de uma normalidade que não está definida. Contudo, fica-se sabendo como se formam sintomas neuróticos e esse é o tema central de toda a teoria em Freud. Poderíamos quase dizer que sua obra é uma vasta exposição da patogenia da neurose, do sofrimento neurótico, individual, coletivo, antropológico. Ninguém melhor do que Freud nos fez entender a natureza do conflito psíquico e, certamente, ninguém antes dele conseguiu pensá-lo, salvo a literatura. Só isso justificaria a reputação e a reverência que o mundo científico lhe consagra bem como daqueles que se dedicam ao estudo da vida mental. Mas, salvo esboços, praticamente pouco sabemos, através dele, como concebia a normalidade para a qual destinava todo o esforço psicanalítico. Como se essa “normalidade” fosse um axioma para todos, assim como a sólida estrutura burguesa do final do século XIX, como acentuou Ellenberger. Talvez essa seja a razão porque ficou o mito de que “todos somos neuróticos”, ou todos doentes, ou todos necessitados de uma psicanálise.
E que, portanto, qualquer pessoa que procure ajuda de um psicanalista deva ser submetido à análise, uma vez que ela só traria benefícios, propiciando uma ampliação do auto-conhecimento e das capacidades adaptativas do ego. Deixa-se, assim, de se considerar duas providências indispensáveis da clínica: o diagnóstico para justificar a indicação de um procedimento terapêutico e a análise teórica das indicações terapêuticas na pressuposição que a intervenção psicanalítica só pode ser benéfica, o que a experiência mostra que é falso.
O caminho para a idealização da intervenção psicanalítica estava aberto e justificado, embora falaciosamente, assim como sua progressiva transformação em um bem de consumo social, eventualmente elegante e promotor de uma classe de “analisandos” que avocavam a si privilégios de mentores, ou de seres especiais capazes de “compreender” os segredos esotéricos, profundos, da natureza humana. O que obviamente facilitou também o progressivo descrédito da Psicanálise e de se suas aplicações. Fazer análise com tal ou qual analista era ostentado como um elevado bem curricular que garantia ascensão intelectual e benefícios sociais, notadamente entre as décadas de 70 e 80 do século passado. Naturalmente para a satisfação dos detratores da Psicanálise e do desespero daqueles que conheciam suas notáveis conquistas e igualmente suas limitações.
Bastaria o alerta de que a Psicanálise não produz necessariamente normalidade, mas consciência. E consciência não é a solução para a normalidade, mas o instrumento para organizar a estrutura simbólica do ego, fazê-lo funcionar de forma adequada para administrar os desafios da realidade, para estabelecer vínculos estáveis com pessoas e orientar as demandas biológicas de acordo com as possibilidades da existência cultural. Fazer psicanálise não é um passaporte para a saúde, mas a aquisição de um instrumento especial para administrar a vida humana que é consagrada pelo uso da consciência.
Especialmente a intervenção psicanalítica nas doenças somáticas foi freqüentemente desastrosa. De certa maneira os conceitos de conflito psíquico como promotor de distúrbios funcionais do corpo, bem como de lesões somáticas (o que estabeleceu a Medicina Psicossomática no século XX) promoveu uma avalanche de tentativas psicanalíticas para tratar etiologicamente doenças físicas, bem como uma profusão de trabalhos alentadores e otimistas a indicar que se havia descoberto finalmente a panacéia, esta agora “cientificamente” fundamentada.
Evidentemente a análise crítica dessas tentativas mostrou o quanto de fantasia terapêutica continham, muito embora tenha contribuído para o extraordinário enriquecimento da compreensão do doente, portador de doenças, daí se originando estudos de Antropologia Médica e de Psicologia Médica. Ainda não encontramos nem o lugar, nem a pessoa, nem o remédio que nos livre definitivamente do sofrimento, ou da patologia. A Psicanálise não foi a resposta, mas ainda é um caminho a ser percorrido em busca de novas respostas.


8 - Modelo das ciências naturais analisando sintomas ao invés do modelo cultural, criando um meio para uma análise estrutural da vida mental.


Discutir a Psicanálise dentro de um contexto científico é a tarefa que continua atual e que os grandes nomes, tanto da Epistemologia quanto da Psicanálise, ainda não chegaram a nenhum acordo. Há muitas sugestões, mas o problema da cientificidade da Psicanálise continua em aberto. É interessante o comentário do próprio Freud em uma carta a E. Jones, depois de uma visita de Einstein, carta citada por H. Hartmann: “He has had [referindo-se a Einstein] the support of a long series of predecessors from Newton onward, while I have had to hack every step of my way through a tangled jungle alone. No wonder that my path is not a very broad one and that I have not got far in it”. Enquanto se discute, nós pobres praticantes ficamos sem saber se o que estamos ouvindo de nossos pacientes é real ou não, se nosso diálogo com eles é confiável ou não, se os nossos resultados terapêuticos existem ou não, se, enfim, somos charlatães ou terapeutas confiáveis. Mais de cem anos se passaram e a comunidade científica ainda não chegou a uma conclusão se nossa prática pode receber a benção da credibilidade científica.
Creio que a questão é mais séria e tem a ver com a distância com a qual nós todos, como seres humanos, nos protegemos de nos conhecer a nós mesmos. Não é por acaso que o produto mais utilizado e de maior circulação no mercado humano é o alienante. Seja esse alienante álcool, drogas, fumo, ilusões, fantasias ou distratores de uma maneira geral. Vivemos fugindo de nós mesmos e sem o conhecimento de nós mesmos ficamos estúpidos, realizamos atos estúpidos, e acreditamos em coisas estúpidas. O século XX, marcado pelo esforço da Psicanálise em conhecer o Homem, foi ao mesmo tempo o século marcado pela maior onda de realizações estúpidas que o ser humano conseguiu perpetrar. A realização do diálogo faustiano, entre consciência e estupidez, ou irracionalidade, mostrou-se em toda sua pujança dialética e os nossos dias são herdeiros desse encontro titânico. A discussão se a Psicanálise é ou não científica parece-me também estúpida, para nos desviar do que é essencial. É essencial sabermos quem somos e o que estamos fazendo. A partir de Freud sabemos que somos basicamente irracionais, utilizando com maior ou menor freqüência os instrumentos racionais penosamente criados por nossa cultura, mas freqüentemente, apesar disso, continuamos a ser irresponsáveis, predadores, instintivos, impulsivos, narcisistas, egoístas, e, finalmente, estúpidos. Ao mesmo tempo, percebemos que com um pouco mais de consciência podemos descobrir a nossa humanidade e descobrir que a humanidade existe. Assim a tarefa é diferente. Não é questionar se a Psicanálise é científica, mas qual ciência (se é que existe) pode conferir credibilidade a esse formidável instrumento de humanização descoberto por Freud, através da produção de consciência, que é o objetivo máximo do ato psicanalítico. E com isso nos tornarmos responsáveis, cultivadores, racionais, altruístas e, finalmente, aprendermos a amar, palavra que se tornou banal no mercado das ambições, assim como seu corolário imediato: a ética.
No início do século XX, vários filósofos, entre os quais W. Dilthey, ensaiaram uma distinção entre ciências da natureza, ou ciências físicas, e ciências do homem, ou ciências culturais. Curiosamente a Medicina continua situada entre as ciências da Natureza, como um ramo da Biologia. Isso criou particularmente para mim, que me dedico na Universidade à Psicologia Médica e à Antropologia Médica, um problema curioso. O de precisar convencer meus colegas médicos de que o ser humano não é só um corpo. Que a existência humana é, sobretudo, cultural e de que cuidar do ser humano é considerar sua dimensão psicossocial, diferente de psicossomática, que procura estudar principalmente as relações etiológicas da patogenia mente/corpo, sem o que o doente no ato médico é descaracterizado como ser humano.
Um grupo sueco classificou a Psicanálise dentro das chamadas ciências hermenêutico-dialéticas, como, por exemplo, a história. Parece-me que a tentativa de unificar todo o conhecimento dentro de uma mesma metodologia seja um convite à cama de Procusto e ao farisaismo intelectual.
Freud repudiava farisaismos intelectuais e acredito que sua aversão por digressões filosóficas tinha muito a ver com isso. Sem dúvida era um pensador e um especulador, mas, ao mesmo tempo, repelia o esmiuçamento exegético de textos. É raro, por exemplo, vê-lo citar em sua obra, ou se valer da autoridade dos mentores do pensamento, dos quais, por outro lado, era também leitor assíduo.
Com isso perdeu a oportunidade de utilizar os recursos dessa nova reflexão epistemológica, nascente na época, e renunciar a linha científico-natural com a qual procurou plasmar a teoria psicanalítica. E deixou para nós a tarefa de desenvolver uma teoria psicanalítica do vínculo humano, ao invés de uma teoria psicanalítica das relações mente-corpo.



9 – Transferência como reedição histórica ao invés do significante aberto para o significado

A linguagem emocional decifrada por Freud e descrita por ele como processo primário de pensar, juntamente com a teoria da transferência que nos permite avançar no entendimento da dinâmica do vínculo humano, são os eixos fundamentais da prática e da teoria psicanalíticas. Esses, como eu entendo, são os personagens centrais de uma variada trama de teorias e afirmações, algumas tentando confluir, outras se dispersando em escolas de pensamento psicanalítico, umas quantas expurgadas do cânone, e não se sabe quantas outras estão para nascer e reivindicar seu posto privilegiado de observação na arena intelectual dessa imensa complexidade que é a mente humana. Na verdade, com esses dois eixos teóricos poderíamos realizar a aventura de penetrar no âmago da experiência humana, ao lado de um companheiro de aventuras, qual Virgílio, e dizer como Dante, logo no 3o canto do “Inferno” da Divina Comédia:
(http://etcweb.princeton.edu/dante/index.html):
“Before me nothing was but things eternal, “Antes de mim não foi criado mais
and I endure eternally. Nada senão eterno, e eterna eu duro
Abandon all hopes, you who enter here. Deixai toda esperança, ó vos que entrais
These words, dark in hue, I saw inscribed Essas palavras vi, num tom escuro
over an archway. And then I said: escritas sobre o alto de uma porta,
'Master, for me their meaning is hard.' Donde eu: “Meu mestre, o seu sentido é duro”.
And he, as one who understood: E ele, a mim, como mestre que conforta:
'Here you must banish all distrust, “Livra-te desse medo cincunspecto;
here must all cowardice be slain. aqui toda tibiez seja morta;
'We have come to where I said que chegando ora estamos ao conspecto
you would see the miserable sinners das tristes gentes das quais já te disse
who have lost the good of the intellect.” Que têm perdido o bem do intelecto”.
(Tradução de Ítalo Eugênio Mauro, Ed.34,S.P.,2005)

Setecentos anos antes de Freud, Dante já havia descoberto o caminho, dentro da maneira de se expressar da época e que lhe valeu igualmente o ódio de seus conterrâneos de Florença, condenando-o ao exílio.
Hoje, revendo as afirmações de Freud, podemos ampliar suas afirmações quanto ao processo primário de pensar, quanto ao que se refere à transferência, tentando corrigir os postulados, diria discretos, originais, e que produziram na prática intervenções apenas tímidas na experiência de relações, base como se viu de toda prática psicoterápica.
O conceito de processo primário de pensar nasceu da tentativa de decifrar o significado dos sonhos, tarefa equivalente, senão de muito maior relevância, ao que Champollion realizou com a pedra de Rosetta, oitenta anos antes. Ainda hoje estamos impactados com esta descoberta de Freud: a descoberta de nossa intimidade emocional. Obviamente não foram os segredos da sexualidade infantil que escandalizaram a comunidade já um tanto lasciva do início do século XX, mas esse terrível instrumento de por a descoberto a hipocrisia, a mentira, o disfarce, a traição, a bestialidade, e todo o horror de impulsos indignos, pondo por terra as fantasias de auto-idealização e, especialmente, de magnificação da natureza moral do ser humano, denunciando suas limitações, suas canalhices, suas baixezas, embora, ao mesmo tempo, destacando sua luta de auto superação, seus conflitos morais, sua grandeza criativa, sua busca por consciência, por aperfeiçoamento moral, por aprimoramento na arte extremamente difícil de viver uma vida humana. A rigor Freud reencenou a viagem realizada por Dante, mostrando que a grandeza só pode ser obtida se a iniciarmos passando pelos rios Cocito, Aqueronte e Lethe e penetrando fundo no Inferno.
Os sonhos, diz Freud, são formas de pensar os desejos pela imagística do processo primário. São formas pré-racionais de reclamar realizações, através de fantasias, ilusões, alucinações, que se expressam na vida consciente como lendas, mitos, ficções, que desde tempos pré-históricos são impressos em produtos culturais. É o homem recriando a si mesmo, já desprovido de seu habitat natural, seu paraíso terreno, e obrigado a se vestir de fantasias e símbolos para sobreviver. Desejos são a energia de vínculo e só são compreendidos na experiência de vínculo. Freud, comprometido com as ciências naturais, qualificou um dos pólos do desejo como sujeito e o outro como objeto. Aparentemente simples, mas equivocado. O outro pólo também é um sujeito e ambos formam uma estrutura interdependente, na verdade um sistema diádico que funciona ele próprio como nova unidade em novas relações interdependentes. A estrutura diádica não é mantida já pelo desejo original mas por organizações simbólicas, capazes de dar sentido àquela nova unidade. É aí que se forma a consciência, na inter-relação humana, mercê da trama simbólica que mantém essa unidade. A trama simbólica é virtual, é o próprio “software” que compatibiliza os elementos em relação.
Nesse sentido “transferência” não é um item de recuperação de memória, mas representa a emergência de elementos da experiência, precariamente simbolizados, para a experiência consciente e apresentados em um novo vínculo para receberem elementos capazes de traduzi-los e convertê-los em partes da trama simbólica atual. Não é o passado se recriando no presente, causando-o, mas o passado se insinuando no presente para ser atualizado, elaborado em uma nova relação. O fenômeno transferencial é o âmago da elaboração psicanalítica porque ele retira a experiência simbólica do espaço emocional, sendo então capaz de impelir essa experiência emocional para a consciência através de uma reencenação do passado na realidade, transformando esses elementos em conteúdos conscientes capazes de serem elaborados psiquicamente. Como um significante que adquire significado.
Se pudermos realizar essa tarefa de converter essas urgências mal elaboradas do passado em conteúdos psíquicos conscientes dentro de um laboratório terapêutico, creio que teremos realizado nossa tarefa psicanalítica, claro que em um meio adequado para que esse laboratório terapêutico funcione.


10 – Ênfase nas experiências biológicas ao invés das experiências existenciais

Ao completar 70 anos, Freud escreve a Romain Rolland: “Unforgettable one! By what troubles and sufferings must you have fought your way up to such a height of humanity as yours! Long years before I saw you, I had honoured you as an artist, as an apostle of the love of mankind. I was myself a disciple of the love of mankind, not from sentimental motives or in pursuit of an ideal, but for sober, economic reasons, because, our inborn instincts and the world around us being what they are, I could not but regard that love is less essential for the survival of the human race than such things as technology. And when at last I came to know you personally, I was surprised to find that you can value strenght and energy so highly and you yourself embody such force of will. May the next decade bring you nothing but fulfillment.” (XXI, 279).

Que notável contraste entre o conteúdo deste bilhete a um dos expoentes do humanismo literário do século XX, com os textos habituais de Freud, enxugados aparentemente de qualquer expressão afetiva, claros, concisos, mesmo sem serem secos, às vezes contraditórios, mas bem germânicos e contidos, onde não dá para esperar nenhum ponto de exclamação. Aparentemente seu entusiasmo fica oculto pela descrição minuciosa além de uma exaustiva analise de conteúdo perpassada por uma disseccão teórica, sem qualquer arrebatamento, como convinha a um expositor de ciências naturais.
Não dá para aceitar um viajante caminhando pelos escuros recônditos da alma, contido e fleumático como um turista britânico educado, como foi Freud desbravando a intimidade emocional do ser humano e ainda por cima recomendando “neutralidade” na interação clínica, como se isso fosse possível. Nunca acreditei que uma interação humana autêntica (e a interação psicanalítica para sê-lo só pode ser autêntica) pudesse ser neutra. Para Freud, pelo que depreendemos de sua atitude ao longo de sua vida, a posição diante do paciente não devia ser neutra, tinha que ser neutra, como uma disciplina monástica para evitar perigosos envolvimentos, produzindo uma “lei seca” afetiva na prática psicanalítica, com resultados eventualmente desastrosos, como podemos inferir das cifras divulgadas de envolvimentos sexuais e perversos entre terapeuta e paciente. Criou-se para esse envolvimento a expressão contra-transferência, impedindo-se em grande medida, com esse rótulo limitante, de se compreender as sutilezas da intimidade real da psicodinâmica diádica. É interessante assinalar que aos transgressores dessa “lei seca” afetiva só restou impor disciplina rígida no melhor estilo medieval, ao invés de um estudo aprofundado da trama afetiva que ocorre na interação terapêutica.
Nesse trecho a Romain Rolland revela-se o Freud amante da humanidade, projetado sobre o grande escritor, da mesma forma como o fez sobre Pfister, sobre Schnitzler e, sobretudo, sobre Thomas Mann. Assim como, num momento de desespero, o macambúzio e contraído Beethoven se revelou como um grande amante da humanidade no testamento desesperado de Heiligenstadt.
Será que o amor à humanidade não é um tema merecedor de atenção científica? Será que o tema mais importante e sagrado de nossa condição humana só pode ser tratado pela arte, seja pela poesia, pela ficção literária, pela pintura e escultura, pela música, enfim, através das Musas? Será que o “Gnothi Seauton” terá que ficar mesmo fora de Conhecimento e se tornar habitante exclusivo dos domínios da Crença? Freud iniciou essa empresa heróica de maneira sistemática. Cumpre-nos, como seus discípulos, continuá-lo e saber que ele apenas balbuciou as primeiras frases desse longo estudo. Com diz Virgílio a Dante: “Ogni viltà convien que sia morta” (“que toda covardia seja morta”).
Numa viagem circunstancial, passando de carro pela Borgonha, vi uma placa numa estrada secundária com o aviso que estava entrando em Clamecy, e logo abaixo, “cidade natal de Romain Rolland”. Parei o carro no acostamento tomado de intensa emoção, como se estivesse entrando num santuário. E pode ser diferente ao nos reencontrarmos com aqueles expoentes que marcaram as diretrizes de nossas vidas, as impregnaram com os seus ideais e a ela deram sentido?
Quando Romain Rolland completava 70 anos, Freud homenageou o amigo com uma carta que ao mesmo tempo é um precioso trabalho que ele intitulou: “Um Distúrbio de Memória na Acrópole”. Conta-nos que realizando uma viagem de férias a Corfu com o irmão mais novo (curiosamente da mesma idade de Romain Rolland) foi persuadido por um conhecido em Trieste, etapa da viagem, a aproveitar os dias de férias para ir a Athenas, programa que certamente os agradaria mais. Após muita relutância resolveram aceitar a sugestão e embarcaram para Grécia. Na Acrópole, Freud nos conta que exclamou (exclamação rara em seus textos): “So all this really does exist, just as we learned at school!” (XXII, 241). A continuação desse trabalho desenvolve um incrível raciocínio sobre essa frase, mostrando o quanto a realidade é importante sobre o que aparentemente já registramos como conhecimento intelectual. Saber é viver. Como diria Theodor Korzybsky: “Mapa não é território”. Athenas existe, eu existo, o outro existe. A enormidade desta experiência avassalou Freud como avassala cada um de nós quando vive a realidade da experiência, experiência que temos chamado de “insight”. Em termos psicanalíticos, a realidade do encontro humano.
O ser humano, na experiência psicanalítica, certamente não é o objeto biológico de estudo de um medico, que examina, faz diagnóstico, trata e pretende curar. O ser humano, sobretudo na relação psicanalítica, é uma experiência existencial, exclusiva entre seres dotados de consciência. Esta é a característica da experiência psicanalítica, ressuscitando a cena da experiência diádica do mito da Gênese bíblica, no primeiro encontro humano depois do casal original provar o fruto da árvore do conhecimento.
A relação psicanalítica é precisamente uma relação transformadora da objetividade biológica para subjetividade humana. Se encontrarmos o método apropriado, acredito que seja possível submeter essa subjetividade ao rigor científico e conferir credibilidade a nossos atos terapêuticos regulares. Esse é o desafio que permanece, desde “A Interpretação dos Sonhos”. Vários eminentes autores tentaram esta difícil travessia do biológico ao existencial, lembrando Ludwig Binswanger, Meddard Boss, Viktor Frankl, Rollo May, sem falar nos chamados culturalistas, particularmente Erich Fromm. Obviamente não creio possível misturar todas essas posturas sem correr o risco de desfigurar todas e descaracterizar a Psicanálise. Mas, creio, que devemos ter a humildade de estudá-las e transcendê-las. E realizar o que Freud desejou, mas contemplou a distância do alto da Acrópole: a humanidade do homem.

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