segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Semiótica

Documentário Janela da Alma



Janela da Alma de João Jardim e Walter Carvalho. Janela da alma apresenta 19 pessoas com diferentes graus de miopia com diferentes graus de deficiência mental - da miopia à cegueira total - que narram como se vêem, como vêem os outros e como percebem o mundo. Janela da alma apresenta 19 pessoas com diferentes graus de miopia com diferentes graus de deficiência mental - da miopia à cegueira total - que narram como se vêem, como vêem os outros e como percebem o mundo.



ESTAMIRA: a salvação no lixo



Mire-veja: Estamira. Esta mira. Esta mirada. Este jeito de olhar. Esse modo particular de ver. A singularidade do ser.







ESTAMIRA: MISSÃO CUMPRIDA

Por LUIZ FERNANDO GALLEGO
28/7/2006

O filme Estamira revela antes de mais nada o respeito à escuta do outro, do diferente, do estranho. Estranho que, entretanto, nos é familiar de alguma forma. Como não admirar - e concordar - com a frase dita por uma doente mental crônica segundo a qual "não existem mais ´inocentes´, mas sim ´espertos ao contrário´ " ?

Em uma cidade, um estado e um país mergulhados num sufocante lixo ético, o "lixão" de Gramacho, nem tão longe da decantada "Cidade Maravilhosa", se transforma numa metáfora deprimente do estado a que chegamos. Com humor que nos atenua as dores intoleráveis, o "Barão de Itararé" assim chamava o "Estado Novo" getulista: o estado a que chegamos. Como chamar o atual estado de coisas a que chegamos?

Não nos iludimos achando que os inúmeros traumas e vicissitudes pelas quais passou a personagem real que dá título ao documentário de Marcos Prado teriam sido "a causa" de sua doença mental. Sua mãe também necessitou de tratamentos psiquiátricos. Uma tendência desfavorável já a acompanhava geneticamente. Mas sua história de vida (que o filme vai desvendando aos poucos), sua especificidade e sua subjetividade - única e irreproduzível - estão inscritas em seus delírios, alucinações e modo de estar no mundo. Nada é gratuito, tudo é revelado, desvelado ou re-escrito na forma de Dona Estamira se apresentar. Seu discurso pode chegar a formular lições de sabedoria, mas, antes de tudo, expõe sua percepção peculiar de si mesma e do mundo em que nos encontramos: delirante e sábia, confusa e cristalina, atordoante e provocadora de reflexão.

Quando o fotógrafo Marcos Prado, ainda no ano 2.000, encontrou Dona Estamira no Lixão que ele fotografava, ela lhe teria dito que tinha uma missão: revelar "a verdade". Perguntou-lhe se sabia qual era a missão dele. Como ele não respondesse logo, ela anunciou: "Sua missão é revelar a minha missão".

Sem se furtar à profecia oracular, Marcos Prado aceitou o papel que a louca do "lixão" lhe apontou. Durante anos seguidos visitou repetidamente Estamira e seus filhos em casa assim como não deixou de ir filmar Estamira e seus companheiros, catadores como ela, no enorme e insalubre depósito de todo o lixo da cidade do Rio de Janeiro. Registrou cenas a cores com a iluminação natural; outras em preto-e-branco granulado quase chegando à desintegração da imagem; outras ainda em exemplar trabalho do fotógrafo que sempre foi. O pathos atingido pela apresentação áudio-visual é impactante, não podendo deixar de ser mencionada a presença apoiadora da exemplar trilha musical de Décio Rocha.

Incrível, no entanto, é constatar que esta é uma primeira obra para cinema. Em seu ritmo envolvente, seu diálogo com a entrevistada e a aproximação que vai fazendo gradualmente com a platéia, o filme é surpreendente em sua sintaxe, elegante em sua gramática, contundente na emoção evidente com a qual foi feito e que transmite em cada passagem.

Não cai na armadilha da idealização ingênua (nem há mais ingênuos, já anunciou o filme logo no início): Estamira pode se mostrar arrogante, verbalmente agressiva, até mesmo desagradável. Mas Marcos permite que ela se faça ouvir. E ao registrá-la faz com que escutemos sua revolta contra um "Deus estuprador" e contra médicos "copiadores" de receitas. Origens e meios são contestados e questionados. Anos depois do próprio cinema, hoje clássico, de Ingmar Bergman questionar o "silêncio de Deus" - e ainda antes do atual Papa tentar deslocar a responsabilidade dos homens para a ausência de Deus durante os horrores do Holocausto - Estamira, o filme e a personagem, denunciam o desamparo humano, não só filogenético ou ontogenético, mas também social, econômico e político. Assim como são questionadas as condições dos hospitais psiquiátricos, dos ambulatórios, dos tratamentos reduzidos à prescrição (ainda que adequada) de medicações potentes que podem até mesmo minimizar os abismos das psicoses, mas onde se corre o risco de deixar de lado a escuta do Outro, da alteridade - tudo isso e muito mais são expostos como um nervo vivo.

E o cineasta, sem proselitismo nem vassalagem, através de uma linguagem cinematográfica grave e comunicativa nos faz refletir muito mais ainda sobre uma realidade que nos parece insuportável de ser vivida, mas aonde a vida surpreendentemente se preserva da única forma que parece possível: louca. Como nos parece ensandecida uma das imagens finais do filme onde, ao longe, se vê o perfil deslumbrante dos morros do Rio de Janeiro, mas em primeiro plano nada mais do que o lixo. Muito lixo.

LUIZ FERNANDO GALLEGO é psicanalista e cinéfilo, curador da mostra 2008 sobre Cinema e Ética no setor Cultural da Escola de Magistratura do Fórum do Rio de Janeiro.



A interpretação da loucura



O estado de falsidade do ser humano é algo fascinante. Vem de uma necessidade de adaptação quase biológica, de comportamentos sociais arraigados, influenciados em menor ou maior quantidade pela mídia, política, “instinto de sobrevivência” ou até mesmo impulsos sexuais. Freud explica? Talvez seja da natureza da contemporaneidade a paixão pela imagem e pelo superficial; seja da perfeição da “linda vizinha” ao “amigo leal”, conceitos criados pelo Homem que nos conduzem no dia a dia e nos dizem que o importante são as relações cultivadas, por mais falsas que sejam. Para mim, Estamira, de Marcos Prado, é sobre isso. Estamira é enxergada e tratada - não só moralmente, mas fisicamente - como louca. Marcos Prado vai nos mostrar que a loucura é assim como tudo, um ponto de vista, no caso dela, um ponto de vista comum entre várias pessoas e que eu, concordando com o dele, discordo.

Estamira é uma mulher que trabalha (e trata isso com orgulho) em um lixão. É antes de tudo alguém que já sofreu diversos abusos e possui um olhar peculiar sobre a vida. Ela se irrita quando o assunto é Deus e se diz sábia, mostrando uma postura que pode ser facilmente confundida com arrogância. Não é. Estamira é um “lugar”, uma idéia, um estado de espírito onde o ser humano pode ser mais autêntico. É alheia ao mundo (o mundo dito “são”) e assim tenta estudá-lo, e por mais que o olhar fechado de fora tente trazê-la para o “real” (é preciso dar remédio a quem “sai da linha”?), o lado inconsciente continua martelando quase como um demônio trazendo de volta discursos embolados que fazem todo sentido. É a manifestação de um interior furioso nascido de um passado infeliz e sofrido, que somado a uma boa dose de “determinismo”, transforma Estamira na figura que é.

O lixão é a representação irônica e trágica da própria condição do homem. Para um olhar raso, é meramente uma imagem de contexto social de pobreza, mas para o grão do super-8 de Marcos Prado, é o lugar onde talvez se encontre a sua própria essência. A idéia de sobrevivência de Estamira nos lembra do quanto nos apegamos ao desnecessário, e como a sensação de prazer trazida por este nos tornou quase escravos do imediato. É a paixão pela imagem já dita antes, que nos torna um bando de desconhecidos buscando impressões sedutoras e fantásticas. Será preciso perdermos tudo (materialmente falando) para poder nos encontrarmos?

Estamira tem 3 filhas e um filho, todos bem criados e que guardam imenso amor por ela, apesar de alguns deles (especialmente o filho) divergir de opinião e enxergá-la com um olhar moldado por forte religiosidade, um ponto de vista claramente antagônico ao da mãe. Para ele, assim como para muitos brasileiros, a religião e a figura de Deus são conceitos intocáveis, tornando a visão “radical” de Estamira inaceitável. Fica claro que ele a enxerga como louca, apesar de o amor de filho ainda se mostrar presente. Estamira é como um desconforto, aquela pessoa que talvez o filho não quer que as pessoas vejam, principalmente nos seus acessos de raiva. Ainda assim, é interessante ver como as filhas (duas delas criadas longe de Estamira) conseguem enxergar a beleza dentro desse dragão furioso, um sentimento que pode vir a ser uma saudade ou um olhar do jovem de cabeça aberta, interessado em escutar um pouco. Estamira quer ser ouvida, algo que ela provavelmente não foi durante a vida toda. É um acúmulo de frustrações que trazem à tona pensamentos tão honestos e nervosos que para o ouvido desatento soa apenas como delírio. É outra coisa que o filme nos lembra: precisamos escutar mais. E Estamira vai repetir as suas idéias e neologismos até conseguir ser tratada com o respeito que merece, sem a definição pré-conceituosa de louca, velha e pobre. A voz de Estamira é uma resposta à negligência social que cometemos dia-a-dia: sabemos dessa crua realidade pois vemos todos os dias no jornal, mas é muito mais confortável pensar no churrasco de domingo, na promoção, no emprego e no novo celular . É o lixo que vira descuido.

Visualmente, Estamira é uma encenação real do apocalipse. É o sol que se mistura com o fogo, com o grão, com o lixo, resto e descuido. É um filme pintado pela natureza, no caso, a humana. É uma arte do descartado, e os outros trabalhadores do lixão fazem parte desse cenário ativo e invasor, que preferimos esquecer. O plano final do filme é um daqueles momentos em que a natureza conspira a favor do cinema, não só encerrando a orquestra do Fim, como ilustrando ali mesmo tudo que foi dito e que está preso na cabeça de Estamira, esta simples humana com algo a dizer.

Gabriel Martins

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