quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Filogenética e diversidade linguística

por Gerardo Furtado


Ao cursar meu primeiro semestre de grego clássico, há alguns anos, descobri – para meu espanto – uma série de semelhanças entre o grego e o latim, que por desconhecimento meu eu absolutamente não esperava encontrar. Lembro-me de que uma das primeiras semelhanças que notei foi o nominativo da primeira pessoa do singular, ego em latim e ego (ἐγώ) em grego.

Naquela época eu conhecia muito pouco sobre línguas e filologia, estava ainda começando a me interessar sobre o assunto. Assim, como neófito que era, a primeira pergunta que à cabeça me veio foi “ego passou do grego para o latim, ou do latim para o grego?”. Cheguei até a formular a pergunta em sala de aula. Para minha sorte, minha professora de grego (tive dois professores no departamento de letras, ambos competentíssimos…), como todo professor de línguas clássicas, também sabia latim, e rapidamente me explicou o que de fato aconteceu.

Para quem conhece a análise filogenética e está desta forma acostumado a ler e interpretar cladogramas, a explicação é relativamente simples. Nem ego passou do latim para o grego, nem ἐγώ passou do grego para o latim. Na verdade, a primeira pessoa do nominativo singular é igual nessas duas línguas por ter se originado de uma língua comum, ancestral a ambas. Tanto o grego como o latim são línguas indo-européias, originadas do proto-indo-europeu. Há inúmeras outras semelhanças, como por exemplo pai: em latim, pater; em grego, pater (πατήρ); em sânscrito, vater; em armênio, pitar; em gótico, fadar; em tocário, pacar.



diagrama com as famílias de línguas indo-européias.


A semelhança por derivação entre as línguas não se aplica apenas ao vocabulário ou à gramática, mas a praticamente todos os aspectos da construção lingüística. Por exemplo, nas línguas sintéticas, os tipos de casos e o padrão de declinação dos casos é bastante semelhante. Tomemos por exemplo rosa (rosa), em latim: nominativo rosa, dativo rosae, acusativo rosam, vocativo rosa. Agora tomemos oikia (ὀικíα), casa, em grego: nominativo oikia (ὀικíα), dativo oikiai (ὀικíᾳ), acusativo oikian (ὀικíαν), vocativo oikia (ὀικíα). Outra semelhança notável: em latim, os adjetivos (a maioria…) masculino, feminino e neutro se constroem com us-a-um, como por exemplo bônus, bona, bonum. Em grego, é quase igual: mikros (μικρός), mikra (μικρά), mikron (μικρόν). Na conjugação verbal, há algo bastante curioso: o grego apresenta dois sistemas de conjugação, o sistema em Omega e o sistema em Mi. O sistema em Omega é semelhante à conjugação latina, a oeste da Grécia. Já o sistema em Mi é semelhante à conjugação do sânscrito, a leste da Grécia. É quase como se na Grécia os dois sistemas de conjugação, geograficamente opostos, houvessem se miscigenado.

Essa percepção filogenética do desenvolvimento e formação de novas línguas não é de forma alguma nova, mas penso que o desenvolvimento da sistemática filogenética, a partir da década de sessenta, pode trazer uma nova série de análises e interpretações desse fenômeno. As ferramentas da sistemática filogenética, principalmente no que tange à construção de matrizes e resolução de relações de parentesco podem ajudar, bastante, a tecer interpretações sobre o desenvolvimento e formação de diferentes unidades lingüísticas.

Eu, particularmente, me interessei bastante por esse tema porque, além de é claro ser um apaixonado pela biologia evolutiva e respeitar bastante os sistematas filogenéticos (cujo labor prático, confesso, ultrapassa em muito minha compreensão e minha suposta paciência), gosto bastante de ler sobre línguas, lingüística e filologia, e recomendo a quem quer que tenha tempo, dinheiro e neurônios sobrando, estudar grego ou latim (lembrando que, em matemática, o operando ou não obriga uma exclusão, isto é, pode-se estudar os dois juntos…)

Há, contudo, uma série de advertências quanto ao estudo filogenético das famílias de línguas.

A primeira, e a mais grave delas, é que ao contrário das espécies biológicas, quando tratamos de línguas, dois ramos (as linhas num cladograma…) podem se fundir, originando um ramo só. Isso se dá quando duas línguas passam a coexistir e terminam por formar apenas uma. No caso das línguas pidgin e das línguas crioulas, formadas pelo contato entre duas línguas distintas (o pidgin de forma mais imediata, e o crioulo de forma mais permanente), o que se dá geralmente é que as linguais originais continuam existindo, enquanto a língua crioula constitui-se numa terceira e nova língua. Se colocássemos isso num cladograma, teríamos a estranhíssima imagem de dois ramos se aproximando, bifurcando-se em quatro ramos, com os dois ramos centrais se unindo.

Outra objeção óbvia é que há, sim, contaminação entre as línguas. No meu exemplo de ego em latim e grego, a palavra veio da raiz comum a essas duas línguas, mas em vários outros casos há contaminação após ambas as línguas terem se estabelecido. Por exemplo, ciência em português e science em francês são semelhantes porque derivam de scientia em latim, sua língua ancestral. Porém, garagem, toalete ou guichê existem em português porque vieram diretamente do francês, e não do latim, comum a ambas as línguas.

Além disso, infelizmente (e felizmente, ao mesmo tempo), vivemos numa época – nesses últimos cem anos, particularmente – em que o contato linguístico tornou-se imensamente mais comum, e em que, de certa forma, a miscigenação vai se dando com cada vez mais freqüência, com o inglês dominando o cenário… Quem sabe se isso não culmina na formação de um crioulo universal, um esperanto natural? Seria interessante para a comunicação do dia-a-dia, mas por outro lado perderíamos algo que acho belíssimo: a diversidade.

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